quinta-feira, abril 30

Uma viagem de auto-conhecimento


Era uma vez um homem cuja filosofia de vida era “mais um dia, mais uma semana, mais um mês, mais um ano...”. O seu nome não interessa. Na verdade, nada relacionado com ele interessava: era insensível, estava semi-morto, não reagia, era escravo do relógio, só conhecia a rotina e não queria conhecer mais. Este homem vivia por viver, porque se não vivesse seria diferente; se morresse chamaria a atenção e ele não gostava de estar debaixo das luzes da ribalta. Era mais um na multidão e até o facto de fazer parte da multidão o assustava. Ostentava ser chão: insignificante, menosprezado - o que se pisa, não o que se observa. A sua companhia era a solidão, andavam de mãos dadas, eram amantes. Mas, inconsciente, este traía constantemente: sonhava com uma vida diferente, o que havia imaginado há muitos anos – uma família, amigos, sentido na vida. Sem saber, desejava-o: conhecer-se, descobrir-se, encontrar-se.
Uma madrugada, como tantas outras, seguiu a sua rotina: levantou-se, com duas horas de antecedência ( “não vá acontecer algum imprevisto” pensava), puxou imediatamente os lençóis e fez a cama; olhou-se ao espelho e viu o rosto de um homem sem expressão. E isso não mudou nada; seguiu e após os rituais habituais saiu de casa. Foi já a meio do percurso para o escritório que se deixou invadir por um receio que o assombrou: teria fechado à chave a porta de casa? Tentou seguir caminho, mas não conseguiu. Aliados ao medo, a aversão à desorganização e a ideía de chegar a casa e dar com tudo de pernas para o ar não o deixaram proseguir. Então, deu meia volta e desorientado correu até casa para se deparar com uma porta trancada. Tinha sido mais uma vez enganado e vencido pelo medo... Sentiu-se vulnerável e lá se fez mais uma vez ao caminho. Chegado ao trabalho, desfez-se em desculpas perante o chefe. O medo era tanto, que todo ele tremia. Mas foi com isto que se lhe foi lançada uma proposta inesperada:
- ...e decidimos que, pelo seu empenho, esforço e dedicação merecia mais do que qualquer um estar envolvido nesta nova missão. Por isso, alegre-se, vai fazer trabalho de campo em Cabo Verde! – disse-lhe ele.
Pela segunda vez naquele dia, o medo dominava-o. Mas desta vez era mais que medo: era pavor, era susto, era tremer por todos os lados. Naqueles segundos, enquanto o chefe aguardava uma reacção, ficou perplexo. Nunca havia saído de Lisboa, sempre morara ali, estudara ali, trabalhara ali, passara férias ali (se pudemos chamar a “acordar uma hora mais tarde e ficar em casa a colocar a leitura de jornais em dia”, férias). Viajar parecia-lhe uma aventura demasiado perigosa, para pessoas destemidas e corajosas, não para si. Pela sua mente passou imediatamente que puderia conhecer pessoas novas, apanhar uma doença mortífera, ser comido por um leão, ser mordido por um mosquito: ideías que o remoíam por dentro. Inseguro, saiu-lhe um obrigado seco e forçou um sorriso. Ia contra a sua vontade, mas era tão fraco que nem um simples não, era capaz de dizer.
Passados alguns dias, estava a bordo de um avião. Morto de susto, mas a bordo. Ao som das palavras “caros passageiros, vamos descolar dentro de breves minutos”, o medo visitou-o de novo. Desgastava-o aos poucos... Achava estar a cometer um grande erro e não sairía impune. Olhava fixamente a porta e o pânico era tanto que lhe passou pela cabeça sair por ali naquele instante. Mas já era tarde demais. Agora estava preso dentro de um avião, a caminho de Cabo Verde, o destino mais longínquo que alguma vez conhecera. Não olhava pela janela, pois assim como tinha medo da vida, tinha das alturas.
Chegado ao aeroporto da Ilha de Santiago, a maior do país, ficou ainda por uns minutos vidrado nos horários dos próximos vôos para Portugal, mas a imagem de um chefe desiludido motivou-o a avançar em direcção à saída. Foi aí que foi recebido por um grande sorriso – era Franciso, um homem jovem que o aguardava. Seria o seu guia durante a estadia e quem o ajudaria a conhecer o povo cabo-verdiano.
- Bom dia, senhor. O meu nome é Francisco e espero puder ajudá-lo no seu artigo.
Já há anos que escrevia artigos para um pequeno jornal independente de Lisboa, mas nunca havia sido repórter. Era uma realidade que desconhecia e isso deixava-o ainda mais indefeso.
- Desculpe, bom dia. Sim, desculpe, mas onde é o hotel? É que, desculpe, estou cansado...
Numa dúzia de palavras, um quarto era “desculpe”. Franciso apercebeu-se do desconforto do homem e numa tentativa frustrada de o deixar mais à vontade disse:
- Ora essa! Venha comigo, eu levo-o na minha mota até Tarrafal. É o último modelo cá em Cabo Verde, requisitado de propósito para o senhor. É um privilégio ter pessoas tão ilustres como você no nosso país...
Envergonhado, não respondeu. Franciso era um homem muito humilde e simples, assim como todos os seus conterrâneos. Mas nem isso deixou o jornalista mais descontraído. Apresentava-se-lhe outro desafio: uma viagem de mota. Num primeiro acto de coragem, pensou “se já cheguei até aqui...” e saltou para a mota. Durante o pequeno percurso, recheado de não tão pequenos obstáculos, deu por si a perder-se na paisagem deslumbrante e por momentos até se esqueceu de que estava em cima de uma mota, com um desconhecido, a caminho de um hotel num país que não era o seu. Aos poucos começou a aperceber-se da presença de algo mágico ali. Seria a simplicidade das crianças que brincavam à beira da estrada, o olhar meigo das mulheres que, apesar de pobres, sorriam ou a sinceridade por detrás daquele abraço, que dois amigos trocavam? Não conseguia discernir, mas gostava do que via: calma, descontração, felicidade, num dos piores cenários imagináveis – a pobreza extrema.
- Chegámos, senhor! – exclamou Francisco.
Era um novo começo e neste momento a cara do senhor era já diferente. Os seus olhos brilhavam; na verdade, haviam ganho cor. De incolores passaram a verdes, da cor da vegetação circundante. Entrou e já nem lá quis ficar...
- Francisco, acha que podíamos dar uma volta? Gostava de começar já.
O jovem estranhou tamanho entusiasmo mas concordou satisfeito. Cabo Verde era o seu orgulho e ter consigo um jornalista de Lisboa a quem o apresentar,, era uma honra. Francisco queria que ele, antes de conhecer o povo, conhecesse a beleza natural do país e então começaram pela praia. Um areal extenso e claro, pequenos barcos de pesca sobre as águas cristalinas e um sol brilhante caracterizavam aquele cenário, que numa palavra, se chamaria deslumbrante. Havia qualquer coisa de especial naquela ilha.
E seguiram-se dias de enormes descobertas – sendo a maior destas, a descoberta de si mesmo. Entre o jornalista e Francisco cresceu uma amizade forte e, pela primeira vez na vida, este sentia que não estava sozinho no mundo. A solidão, essa, lançou-a ao mar e fugiu.
De volta a Portugal, era um homem novo. Aquele trabalho havia-o salvo e virou repórter. Era espontâneo, gostava da vida e passou a ir até ao Tejo sentir a brisa na cara. Aquele rio era o mais próximo de Cabo Verde que conseguia estar e passava horas ali. Já não era escravo do tempo, era escravo da felicidade.
Um dia, a caminho do trabalho passou-lhe pela cabeça o mesmo pensamento: havia trancado a porta de casa? Não voltou para trás, seguiu caminho. A possibilidade de perder algo não o assustava: tinha ganho a maior das coisas em Cabo Verde. Tinha ganho vida, identidade, rumo. Descobriu quem era: Afonso era o seu nome...

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